O
ano de 2015 marcou a renovação da cúpula do Exército com a chegada aos postos
de comando de oficiais que não foram meus contemporâneos nas escolas de
formação. Procurei saber o que pensam estes generais que assumiram o comando da
Força terrestre. Fixei-me no Comandante do Exército, general Villas Bôas, no
Chefe do Estado Maior do Exército, general Etchegoyen e no Comandante Militar
do Sul, general Mourão.
Acredito
que, passado um ano, já se pode ver o cenário com a clareza necessária para
emitir opiniões e colaborar para que os militares venham a reassumir o
protagonismo perdido depois do chamado “regime militar”. E farei o que venho
fazendo nos últimos trinta anos, ciente do que disse Felipe Gonzáles, o
ex-primeiro ministro espanhol: “No se modifica la realidad desde la orilla. Si
quieres modificarla, hás de mojarte”.
Venho
defendendo, nos últimos trinta anos, que os militares assumam um papel mais
ajustados às nossas demandas e à realidade do cenário em que nos inserimos. No
artigo “Por trás do urutu”, publicado no Jornal do Brasil e no Correio
Braziliense, no dia 25/10/1987, quase trinta anos atrás, buscava influir os
constituintes: “Está nas mãos dos constituintes o estabelecimento das
diretrizes que permitam a definição do papel a ser exercido pelas Forças
Armadas, hoje sem missão estratégica realista. Somos fracos para a guerra
convencional contra uma superpotência. Estamos despreparados para organizar a
luta guerrilheira nacional que seguiria a uma eventual ocupação de nosso
território. E estamos à margem da nossa grande guerra ao subdesenvolvimento. É
preciso dar às Forças Armadas um perfil marcado pela flexibilidade operacional
e tecnológica, com objetivos estratégicos ajustados à realidade nacional, com
tropas profissionais bem remuneradas, bem equipadas e engajadas nas atividades
de defesa e de combate ao subdesenvolvimento”.
Assisti
à palestra que o general Etchegoyen, Chefe do Estado Maior do Exército,
proferiu na SIBRA (Sociedade Israelita Brasileira de Cultura e Beneficência,
Porto Alegre, 25/6/2015), “A nova
composição de forças internacionais”.
A
simpatia do general e o domínio dos assuntos abordados cativou a plateia de
forma a tornar leves duas horas de exposição, sem intervalo. O interesse de uma
plateia qualificada e preocupada com a preocupante conjuntura nacional que
chegou a se empolgar, diante da segurança transmitida pela exposição do
general. A empolgação chegou até a lançamento à Presidência da República.
Sai
de lá pensando no que o general havia exposto sobre o pano de fundo de um mapa
mundi iluminado. Na cobiça do Norte iluminado pelas commodities do apagado Sul;
nos déficits de soberania; nas projeções de poder que as assimetrias provocam;
na estabilidade da América do Sul com suas fronteiras externas resolvidas, mas
ameaçada por problemas insolúveis em suas fronteiras internas; na estratégia de
dissuasão, no caso brasileiro; na nossa tendência de importarmos ideologias e
sobre elas fixarmos um debate dominado por raiva, resmungos, preconceitos e
ressentimentos e deixarmos de lado os nossos reais interesses; na necessidade
de um projeto de país; na nova mentalidade de defesa criada pelo END; na
estabilidade institucional gerada por um modelo com três protagonistas: FFAA,
Sociedade e Governo em que os espaços são mutuamente acordados e respeitados e,
por fim, no alerta dado: “o Exército tem duas grandes preocupações: a
preservação da coesão social e a preservação da nossa soberania, qualquer coisa
que atente contra isso aciona o nosso radar”.
Isolamento
Em
algumas passagens o general Etchegoyen deixou-me a convicção de que o Exército
continua dominado pela ideia força que vem desde o fim do regime militar:
recolher-se aos quartéis e deixar que a sociedade faça as coisas como bem
entender e esperar que volte a chamá-lo, como em 1964, quando, convocados,
intervimos, assumimos uma cota de sacrifício que nos pesa até hoje e, ainda nos
debitaram todos os erros sem nos ter creditado os acertos que nos catapultaram
para uma economia moderna, base de tudo que temos hoje.
Agora
somos nós, eles e o governo, pois, segundo o general, “nós encontramos um
modelo: FFAA, Sociedade e Governo em que os espaços são mutuamente acordados e
respeitados” e repisa: “Esse modelo passa por uma consciência do Governo sobre
o papel das FFAA e da autonomia que ele, Governo, deve dar às FFAA, nas suas
coisas”.
E
quando perguntaram sobre o que achava melhor para ser o ministro da Defesa, um
general ou um civil, foi peremptório: “Um civil é muito melhor. No caso de um
militar ele tinha que usar dois chapéus, pois ele é o representante dos
militares junto a Presidência da República e da Presidência da República junto
aos militares e não existe um general com voto no Congresso para defender os
militares”. “É melhor com um político no MD, pois nós cuidamos da Força e ele
(o MD) vai cuidar das questões políticas”. “O ministro da Defesa tem que ser
político, tem que ter poder político”.
Sinto
neste posicionamento dos nossos generais a consolidação de uma ideia equivocada
dos chefes revolucionários de que era necessário tolher a evolução natural de
um oficial aonde o vetor profissional, predominante no início da carreira, ia
cedendo espaço para o político, de forma que no topo, a resultante apontasse,
predominantemente, para o político, para suprir aquilo que o Chefe do EME acha
melhor deixar nas mãos dos políticos: a capacidade de negociação para a
satisfação das demandas da Força. Migramos de um modelo que forjou a Revolução
de 64 e nos salvou do caos para o que aí está em que olhamos para dentro, para
o presente e deixamos que políticos tratem do nosso futuro. E políticos sem o
mínimo preparo para tratar de assuntos de defesa nacional.
Assegurou,
no entanto, o general Etchegoyen, diante da preocupação externada sobre as
ameaças de movimentos sociais e de forças paramilitares, tipo MST: “o Exército
tem duas grandes preocupações: a preservação da coesão social e a preservação
da nossa soberania, qualquer coisa que atente contra isso aciona o nosso radar”.
Em
suma, como salientou o general, “temos FFAA conscientes do seu papel,
vigilantes e elas não representam ameaça nem para a Sociedade e nem para o
Governo”, mas com o radar ligado, prontos para atender qualquer chamado da
sociedade civil.
De
tudo, o que mais me preocupou foi constatar que se consolidou o que eu temia e
contra o que venho lutando nestes últimos trinta anos: o modelo de país que
está na cabeça dos militares é o de um arquipélago formado por três ilhas, a
Sociedade, as Forças Armadas e o Governo. E este arquipélago fica ainda mais
nítido quando se constata que as pontes entre a Sociedade e o Governo estão
sendo dinamitadas pela rejeição provocada, em suma, pela lassidão moral que se
enraizou em nosso meio. E que as existentes com os militares foram sendo
demolidas, gradativamente, a partir de 1964.
Sempre
combati este isolamento dos militares que vejo se consolidar. O cerne da minha
militância, no assunto, está no meu livro “Os militares e a guerra social”
(Artes e Ofícios, 1994) onde defendo a criação de condições para que o Exército
volte ao protagonismo que o consolidou como a instituição de maior prestígio
junto à sociedade.
Por
mais paradoxal que possa ser, este isolamento que se consolida, começou lá em
1964, quando os militares assumiram o poder e decidiram “profissionalizar” as
forças armadas, ensimesmando-se, queimando pontes. Páginas e mais páginas
seriam necessárias para mostrar as consequências das decisões equivocadas de
destruir pontes que nos mantinham integrados, principalmente, à sociedade.
A
falta de visão ao submeter os militares à “cota de sacrifício” quando deveria
ter sido estabelecido um Plano de Carreira que mantivesse a carreira militar
atraente diante da concorrência surgida com o “boom” desenvolvimentista dos
anos 70, causa principal do descolamento do perfil do oficialato do da
Sociedade. E a perda de atratividade gera uma natural evasão dos melhores
quadros na busca de uma vida melhor.
Paradoxal,
repetindo: foi durante o regime militar que se construíram as carreiras de
Estado que hoje estão atraindo nossos jovens oficiais em uma evasão que
considero um dos problemas dos mais graves a enfrentar, muito mais do que o
reequipamento. Foi durante o regime militar que nos consolidamos na posição de
“primos pobres” das carreiras de Estado. E este problema, ressalto, é
prioritário, pois levaremos, no mínimo, uma geração para recuperarmos o status
dos anos 60.
Pela
importância, abro parêntesis para comentar a entrevista do Comandante do
Exército à Revista do Clube Militar (abril/2015), quando abordado o assunto
evasão de jovens oficiais. Perguntado sobre o preocupante aumento da taxa de
evasão de militares de carreira, passou-me a visão de um perigoso conformismo
que chega às raias daquilo que o general Synésio Fernandes considerou, ao
traduzir, em email, a indignação dos militares com a inação dos chefes contra a
degradação salarial: “a hipocrisia que esconde a realidade com o seu manto de
deboche”. Quando perguntado sobre a “preocupante taxa de evasão de militares de
carreira”, alegou o General Villas Bôas, que devido à ótima formação dos
oficiais do Exército, estes “tornam-se extremamente atraentes para o exercício
de funções da iniciativa privada e candidatos muito competitivos nos cargos
oferecidos nos melhores concursos públicos”. E arrematou: “a saída precoce
desse pessoal, ao menos nos assegura, favoravelmente, a disseminação da imagem
e da reputação do Exército por novos ambientes da sociedade brasileira,
conduzindo e divulgando os valores da Força, e contribuindo, de forma indireta,
para a missão de cooperar com o desenvolvimento do País”. Ora, não é missão do
Exército formar quadros para a iniciativa privada ou preparar candidatos competitivos
para os melhores concursos públicos. Este conformismo deveria dar lugar à busca
de atratividade para a carreira militar, cuja condição básica está apontada na
END: “que seja remunerada com vencimentos competitivos com outras valorizadas
carreiras do Estado”.
Fecho
o parêntesis para abordar outra ponte que foi destruída: o patrulhamento
imposto ao Clube Militar que o levou de vetor do protagonismo político dos
militares no debate nacional ao domado papel de clube social, de círculo
militar da guarnição do Rio de Janeiro. Registro mais uma vez a minha convicção
e desafio que a desmontem: foram os militares que se isolaram da Sociedade,
através de decisões equivocadas, fruto da falta de visão estratégica.
Esta
preocupação se torna ainda maior quando se constata que o general Etchegoyen,
Chefe do Estado Maior do Exército, é neto e filho de chefes militares daquele
exército que a Sociedade sempre confiou e que sempre o considerou como parte
dela, sendo um reflexo do seu perfil. Seu avô foi, inclusive, presidente do
Clube Militar em uma das fases em que o seu protagonismo no debate político foi
dos mais agudos e que, a meu juízo, serve de paradigma para o que se deseja
para o nosso clube. Preocupante, pois, seguramente, o pensamento do general é o
predominante entre os atuais chefes militares.
Foi
de propósito que comecei a fazer considerações sobre a excelente palestra do
Chefe do Estado Maior do Exército, pelo isolamento, pela, que vejo consolidada,
“posição de equilíbrio” atingida pelo modelo “FFAA, Sociedade e Governo” porque
vai ditar o papel dos militares no Brasil que estamos querendo construir,
ajustado às demandas e recursos do país ou aos anseios dos militares.
O
Brasil na América do Sul
Conforme
salientou o Chefe do EME, o Brasil pertence a um condomínio chamado América do
Sul, um mosaico com 12 nações, com fronteiras bem definidas, ocupando 12% da
superfície do planeta em que habitam 6% da sua população, exercendo soberania
sobre 25%, tanto das suas terras agricultáveis como da sua reserva de água
potável. Deste condomínio, ao Brasil correspondem 47% do território, 55% da
população e 58% do PIB.
“A
estabilidade mora na América do Sul”, constata o general. Estabilidade de
fronteiras, pois, como reconhece, se as fronteiras externas são de integração,
as internas causam instabilidades, fruto de dramáticas assimetrias provocadas
pela criminalidade, pobreza, falta de saúde, miséria e pelo pai e mãe delas que
são a corrupção e a falta de educação. E para agravar este quadro de
instabilidade interna, acrescenta o general, “ficamos nos digladiando,
aceitando meridianos ideológicos e não definimos o nosso interesse, qual a
nossa responsabilidade com as gerações que vão nos suceder, como vamos garantir
a estas gerações o desfrute destas riquezas?”.
E
o que agrava este cenário delineado pelo Chefe do EME, é que os últimos
governos se fixaram em consolidar um projeto de poder e não a implementação de
um projeto de nação. Trataram de consolidar uma massa de manobra que garantisse
votos à custa de benesses governamentais e aproveitaram os bons ventos do
desenvolvimento chinês para transformar o Brasil em um fornecedor de
commodities para a plataforma mundial de produção de mercadorias. Paradoxal,
mas a China capitalista conseguiu o que a China de Mao não conseguiu:
transformar o Brasil em uma grande Cuba.
A
má qualidade da educação no país associada à excludente revolução digital,
disparada pelos avanços na computação e nas tecnologias de informação e
comunicação ao fim do século XX, tende a produzir massas de excluídos do
processo produtivo que viverão à custa do Estado. De acordo com o levantamento
da CNI, o Brasil aparece em penúltimo lugar no ranking de competitividade
formado por 15 países. Na classificação da OCDE, o Brasil está no fim da lista,
na posição 60/76. A automação em larga escala das linhas de produção significa
que somente os qualificados permanecerão empregados levando ao fenômeno que os
economistas chamam de "desindustrialização prematura".
Além
disso, apontou o general que “a América do Sul é uma região do mundo com
déficits de soberania muito graves. Se nós, ainda, não integramos 62% do nosso
território, que é a Amazônia, nós temos um déficit de soberania; se as Malvinas
são Falklands, nós temos um déficit de soberania; se as FARC dominam 30, 40 por
cento do território colombiano, nós temos um déficit de soberania; se a França
ainda tem uma colônia na fronteira com o Amapá, nós temos um déficit de
soberania”.
E
com todos esses déficits de soberania e conformados com o papel de supridor de
commodities, 6% da população do planeta precisa garantir a soberania sobre
imensas reservas de recursos, diante de pressões dos países do Norte, já
orquestradas por porta vozes de todo o espectro ideológico, como Kissinger
("Os países industrializados não poderão viver da maneira como existiram
até hoje se não tiverem à sua disposição os recursos naturais não renováveis do
planeta. Terão que montar um sistema de pressões e constrangimentos garantidores
da consecução de seus intentos, 1994"), como Mitterrand ("O Brasil
tem que aceitar a soberania parcial sobre a Amazônia", 1989), como
Gorbachev ("O Brasil tem que delegar parte de seus direitos sobre a
Amazônia a Organizações Internacionais competentes,1992"), como o “Grupo
dos Cem” ("Somente a internacionalização poderá salvar a Amazônia",
1989) ou como o Congresso de Ambientalistas Alemães ("A Amazônia tem que
ser intocável, porque é o suprimento de florestas da humanidade", 1990).
Pressões
que começam a se materializar, conforme apontou o general, pelo posicionamento
das potências nucleares China, Estados Unidos, França, Inglaterra e Rússia
visando alguma forma de comandamento sobre o suprimento de commodities,
petróleo e água potável. E continua o general a delinear o cenário: “A OTAN, na
sua última diretriz estratégica definiu que Atlântico norte ou sul são uma
coisa só para defender os interesses dos seus membros”, “A China está chegando,
com presença muito forte no Atlântico Sul, com presença na África Oriental e,
agora, comprando terras na Argentina”, a Inglaterra com presença na cadeia de
ilhas do Atlântico sul que vai até as Malvinas, “a França costuma dizer que a
sua maior fronteira terrestre é com o Brasil”, “a Rússia está na Venezuela e na
Bolívia com bom suporte militar, não em pessoal, mas em equipamento” e os
Estados Unidos com presença militar na Colômbia e sua IV Frota.
E
a China não está só na Argentina, mas aqui, no Brasil, com o programa CBERS 4
de satélites de sensoriamento remoto desenvolvido em parceria e que manda do
espaço dados estratégicos sobre o território brasileiro. Inclusive, segundo o
general Etchegoyen, a China está pedindo para que o Exército Brasileiro vá dar
instrução de guerra na selva, na China! “Engraçado, mas é isso mesmo: eles
querem aprender operações na selva e eles estão na Ásia”, comenta. Sobre o
projeto CBERS é necessário que se registre que os dados recebidos do satélite
que, convertidos em imagens, são estratégicos para os planos de defesa da
região e para o controle da maior reserva florestal e hídrica, na faixa
tropical do planeta, somente são covertidos em imagens na China, pois não
dispomos do software para a decodificação dos dados e os chineses não as
repassam ao Brasil e nem fornecem o software para rodar nos computadores
brasileiros.
E
pergunta o Chefe do EME: “E o que o Exército Brasileiro está fazendo neste
cenário de incertezas em que o mundo ainda não encontrou a paz que vai presidir
a vida dos nossos netos”?
Estratégia
Nacional de Defesa
Informa
o general Etchegoyen que está em desenvolvimento um processo de transformação
para ajustar o Exército às novas diretrizes da Estratégia Nacional de Defesa
(Decreto n. 6.703/2008), “que nos dê capacidade de enfrentar o que virá, e que,
como conversamos até agora, é incerto, não sabido”.
Em
suma, o Chefe do Estado Maior do Exército, no inverno de 2015, pergunta o que o
Exército Brasileiro está fazendo neste cenário de incertezas e ele mesmo
responde que está se capacitando para enfrentar o que é “incerto, não sabido”.
Trata-se,
seguramente, da declaração mais sincera e corajosa feita por um chefe militar,
nos últimos trinta anos: o reconhecimento de que estamos nos equipando para
enfrentar um inimigo que desconhecemos. O reconhecimento de que viemos, ao
longo deste longo período, repetindo o erro de Saddam Hussein que gastou
bilhões de dólares para montar, no Iraque, uma das mais poderosas forças
armadas para virar sucata na tempestade no deserto que provocou ao desafiar a
maior potência militar do planeta.
Estamos
nos equipando para o quê? Para dissuadir a marinha de Evo Morales de ameaçar o
nosso pré-sal ou para dissuadir um dos nossos vizinhos de nos invadir quando
sabemos que somente a nossa projeção de poder é mais do que suficiente para
manter a estabilidade das nossas fronteiras, como reconhece o Chefe do EME? Ou
nos iludindo porque sabemos que a única dissuasão respeitada pelas nossas reais
ameaças é aquela que insensatamente renunciamos, a nuclear? E a prova está aí
nas manchetes: a Coreia do Norte, um país miserável, que sem o seu arsenal
nuclear já teria sido varrido da face da terra há muito tempo.
E
que cenário de incertezas é este, se a END parte do princípio que vivemos em
paz com nossos vizinhos e que a nossa natural hegemonia dispensa qualquer
anseio imperialista? E se a Política Nacional de Defesa, que estabelece os
Objetivos Nacionais de Defesa tem, como o primeiro deles, a garantia da
soberania, do patrimônio nacional e da integridade territorial?
Será que a estabilidade de
fronteiras pode nos assegurar que “a estabilidade mora na América do Sul”, com
todas as dramáticas assimetrias e os preocupantes déficits de soberania
apontados pelo general, potencializados pela nossa tendência a ficar “nos
digladiando, aceitando meridianos ideológicos”, em vez de definir “o nosso
interesse, qual a nossa responsabilidade com as gerações que vão nos suceder,
como vamos garantir a estas gerações o desfrute destas riquezas” e, além de
tudo isso, pelo posicionamento das potências nucleares China, Estados Unidos,
França, Inglaterra e Rússia visando alguma forma de comandamento sobre o
suprimento de commodities, petróleo e água potável?
Constata-se que nada mudou
desde o fim do dito regime militar. Naquela época, se vivia a Pax Americana,
com a hegemonia norte-americana, depois da fragmentação da União Soviética e da
Guerra do Golfo. Aqui na América do Sul, já se vivia o mesmo cenário de hoje,
pautado pela estabilidade, mas com o interesse das potências industriais (e
nucleares) em nossos recursos naturais e as naturais pressões já expressas. O
que se agravaram foram as assimetrias e os déficits de soberania que aumentaram
as tensões nas fronteiras internas.
As
FFAA passaram por um período difícil ao saírem do regime militar: orçamento
baixo, equipamento e armamento sucateado, críticas sobre a atuação nos chamados
anos de chumbo, a necessidade de definir o papel dos militares com a revisão da
doutrina militar e redefinição das próprias missões. Na realidade, as forças
armadas brasileiras mergulharam em uma crise existencial o que suscitou um
debate sobre o papel que os nossos militares deveriam assumir e que, pelo visto,
ainda não terminou.
No
meio deste debate que se iniciou no fim dos anos de 1980, o almirante Armando
Vidigal em “Uma nova concepção estratégica para o Brasil” (in, Revista Marítima
Brasileira, jul./set. 1989) alertava que “As Forças Armadas correm o risco
de “desemprego estrutural”, isto é, de se tornarem imensas organizações sem
objetivos concretos, com militares eternamente à espera de algo que sabem não
acontecerá. Caso outras motivações, de maior credibilidade, não venham
substituir as antigas, os militares viverão uma crise existencial, com
possibilidades de transformarem-se em burocratas fardados encarregados de
operar um mecanismo inútil, uma máquina de caçar fantasmas”.
Conforme
alertou o Almirante Vidigal, as FFAA correm o risco “de se tornarem imensas
organizações sem objetivos concretos, com militares eternamente à espera de
algo que sabem não acontecerá”, “caso outras motivações, de maior
credibilidade, não venham substituir as antigas”, correm o risco de mergulhar
em uma crise existencial, “com possibilidades de transformarem-se em burocratas
fardados encarregados de operar um mecanismo inútil, uma máquina de caçar
fantasmas”.
O
cerne da questão está na reação de os militares aceitarem a substituição de
antigas motivações por outras de maior credibilidade, como prega o almirante.
Naquela
ocasião, pregava eu (IX Conferência Continental da Associação Americana de
Juristas, Porto Alegre, inverno de 1991) que “a discussão que se desenvolve no
mundo sobre o papel dos militares na nova ordem que se estabelece após a
fragmentação da União Soviética e da guerra do Golfo chegou ao Brasil e aos
poucos começa a empolgar a sociedade. No debate interno, dominam modelos
estrangeiros baseados em concepções estratégicas calcadas em demandas e valores
diferentes. O risco é que não aproveitemos essa oportunidade para moldar as
nossas Forças Armadas às nossas necessidades, ao esforço para construir, no
Brasil, a grande nação do século 21. Devemos enfrentar com todo pragmatismo a
Pax Americana que os americanos e seus aliados tentam impor aos países do
Terceiro Mundo. Nada adiantará procurarmos em tal estratégia um complô para
desestruturar as nossas Forças Armadas. O que devemos é pensar estrategicamente
e buscar condições favoráveis à construção de uma nação para nós e nossos
filhos. Aproveitarmos os ventos de paz para enfrentarmos o nosso grande inimigo
que é a miséria. Contra o qual é impotente toda a parafernália que equipa os
modernos exércitos do mundo desenvolvido, como bem ilustra Saddam Hussein, que
submeteu o seu povo à miséria para equipar um exército que foi esmagado na
guerra do Golfo. Será que o modelo adotado pelos países ricos serve para as
nossas Forças Armadas?”.
E
encaminhava uma proposta de modelo de um novo papel para os militares sugerindo
que o “nosso planejamento estratégico militar deveria considerar que não temos
inimigos potenciais para os quais tenhamos que nos preparar e que somos
impotentes, mesmo gastando tudo que possuímos em armamentos, para enfrentar as
grandes potências industriais e que temos um inimigo cruel: a miséria”.
Das
muitas reações, registro duas frases. A conclusão de o editorial “O País das
Maravilhas”, Noticiário do Exército, 11/7/1991, referindo-se às minhas
propostas: “Felizmente, nossa sociedade não comunga com as ideias acima,
esposadas por minoria obscura, constituída por ex-militares, frustrados em sua
vocação, que pouco ou nada produziram pela Instituição, dela se valendo apenas
para proveito próprio”. E a minha resposta (“Coragem de Mudar”, jornal “Ombro a
Ombro”, julho de 1991), a artigo publicado no mesmo jornal, em que minhas
propostas, segundo o irado autor, um prestigiado chefe militar, “se perdem e se
esvaziam no emaranhado de baboseiras, contradições, incoerências e aleivosias”:
“O país está sendo atacado por inimigos mortais que ocasionam milhares de
baixas diárias”, rebatia eu. “O país está assustado diante de tanta miséria e
tanta violência. A quem caberá, se não a nós, liderar o esforço nacional, a
reação nacional? Pertencemos a uma das poucas instituições com o potencial
exigido para tal esforço. Lutar contra este estado de coisas é defender a
soberania nacional. Mudar o papel não indica fracasso ou fraqueza. Pelo
contrário, mostra coragem e capacidade de se ajustar às ameaças a que está
submetida a Nação”.
Passados
trinta anos, verifica-se que os nossos comandantes não só não seguiram as
sugestões feitas para repensar o papel que deveriam exercer como não seguiram o
sábio conselho de Roberto Campos: “Saber mudar de inimigos é não só uma receita
de sobrevivência como, às vezes, uma receita de sucesso”.
Preferiram,
pelo que se constata, o isolamento. Nas palavras do Chefe do EME, na já mencionada
palestra em Porto Alegre: “nós encontramos um modelo: FFAA, Sociedade e Governo
em que os espaços são mutuamente acordados e respeitados” e repisa: “Esse
modelo passa por uma consciência do Governo sobre o papel das FFAA e da
autonomia que ele, Governo, deve dar às FFAA, nas suas coisas”.
E
aí, torno minha a pergunta feita pelo general Etchegoyen: “E o que o Exército
Brasileiro está fazendo neste cenário de incertezas em que o mundo ainda não
encontrou a paz que vai presidir a vida dos nossos netos”? E responderia com o
alerta feito pelo Almirante Vidigal: assim procedendo, “As Forças Armadas
correm o risco de “desemprego estrutural”, isto é, de se tornarem imensas
organizações sem objetivos concretos, com militares eternamente à espera de algo
que sabem não acontecerá. Caso outras motivações, de maior credibilidade, não
venham substituir as antigas, os militares viverão uma crise existencial, com
possibilidades de transformarem-se em burocratas fardados encarregados de
operar um mecanismo inútil, uma máquina de caçar fantasmas”.
Porque
este modelo que se consolidou nestas três ilhas, FFAA, Governo e Sociedade,
passados trinta anos do regime dito militar, já causou os temidos efeitos do
afastamento dos militares da Sociedade e de um projeto de nação e da sua
aproximação da área de influência do Governo com a natural sintonia com o seu
projeto de poder.
Concluo
este texto com um desafio, parafraseando o General Etchegoyen: “E o que o
Exército Brasileiro poderia fazer, neste cenário de incertezas em que o mundo
ainda não encontrou a paz, para criarmos um Brasil melhor para nós, nossos
filhos e netos”?
Trata-se,
reconheço, de um assunto polêmico, mas como bem estabelece a Estratégia
Nacional de Defesa (Decreto 6703/2008): “Disposição para mudar é o que a Nação
está a exigir agora de seus marinheiros, soldados e aviadores. Não se trata
apenas de financiar e de equipar as Forças Armadas. Trata-se de transformá-las,
para melhor defenderem o Brasil”.
Péricles
da Cunha, 11/02/2016.
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