sexta-feira, 8 de maio de 2020

O falso inimigo dos tenentes





Nota do autor
Este texto foi escrito em janeiro de 2012

Podemos dizer que integramos a geração dos Tenentes de 64, daquela geração que foi forjada nos anos quentes da Guerra Fria. E esta geração lembra muito a figura do capitão Giovanni Drogo, a figura central do excelente “O deserto dos tártaros”, de Dino Buzzati.
Desde que li esse livro, lá nos anos 80, é que vejo no capitão Drogo o retrato do Tenente de 64. O livro, escrito antes da Segunda Guerra Mundial, conta a desventura do oficial Giovanni Drogo, o qual, aos vinte anos, é nomeado, em seu primeiro posto, para o forte Bastiani, que se ergue imponente e solitário às margens abandonadas do “deserto tártaro”.
Drogo, que espera ficar ali poucos meses, aguardando uma transferência, vê a vida transcorrer sem que sua razão de ser se realize: “transformar-se num soldado verdadeiro, conhecer a glória de participar de uma guerra que, tudo indica, não vai acontecer....".
No romance, o jovem tenente Giovanni Drogo, chega numa manhã de setembro ao seu primeiro posto militar: o Forte Bastiani, para o que deveria ser uma curta temporada de quatro meses e que termina sendo a história de uma vida frustrada.
O jovem tenente Drogo, preso de uma angústia indefinível, quer voltar a sua cidade próxima, chegando mesmo a participar de uma ridícula audiência para transferência, sem êxito; porque há algo indefinível que o força a ficar.
Drogo tinha um sonho, sim, mas nada fez de concreto para realizá-lo. O sonho de um ideal de heroísmo militar, de uma carreira e uma vida inteira dedicada à caserna é dissipado com um dia-a-dia rotineiro – em meio à disciplina e as atividades do quartel – do refeitório ao jogo de cartas e de xadrez etc. E a rotina no forte Bastiani o retém até que a velhice o capture, impotente para reagir ao inimigo real, de forma mais intensa e devastadora do que o invasor que chega: a vida que não se realiza.
O Deserto é o romance de um jovem oficial que passa a vida inteira, frustrado, numa fortaleza de fronteira, esperando o ataque de inimigos que talvez não existam. De um personagem em sua eterna vigília na fortaleza, à espera de um ataque que traga honra e glória.
Este livro, lido há mais de trinta anos, marcou-me muito e traços dele podem ser notados ao longo de tudo que escrevi sobre o papel que nós, militares, deveríamos assumir no pós-regime militar. Como disse um crítico: “O Deserto dos Tártaros é um livro para ou te fazer mudar de vida ou para abandonar essa, dada a profundidade do tema tratado”. Trata-se de uma aguda reflexão sobre a inutilidade do poder. “Afinal, Buzzati nos conta um pouco da vida de todos nós. Você não tem a impressão que, às vezes, está esperando algo acontecer para mudar de vida? Que esse algo está ali, logo ali, virando a esquina, mas você nunca chega à esquina? E que, na verdade, você até sabe disso, mas não quer admitir, que você é o único responsável pelas mudanças?”, continua. Essa a grande lição deste magnífico livro: você é o único responsável pelas mudanças!
De uma crítica, das muitas que colecionei sobre o livro: “O final do livro emociona os que acompanham toda a vida de Drogo dedicada ao forte. De certa forma nos remete aos dias atuais em que muitos se dedicam obstinadamente a objetivos ilusórios, passam sua juventude lutando por um sonho e deixam de viver a vida verdadeiramente.
Depois da leitura podemos nos questionar: o que ando fazendo da minha? Pelo que ando lutando? Em pleno século XXI, se ainda não temos respostas, pelo menos conseguir formular mais claramente nossas perguntas...”.
Assim como Drogo, o jovem Tenente de 64, tinha um sonho bem expresso por um dos integrantes desta geração, na sua despedida do serviço ativo, como oficial general: “A formação da minha geração foi pautada pela constante preparação para o combate. Víamos a possibilidade de emprego assim que saíssemos da Academia”.
Uma espécie de vaidade militar, misturada ao desejo de uma carreira heroica, e ao fascínio impressionante pelas “terras do Norte”, pelo deserto dos Tártaros - selvagem e desolado – molda uma espécie de areia movediça em que o personagem se afunda, lenta e progressivamente, até ao final nada heroico. Tudo conspira para que Drogo fique de olho voltado para o deserto, de onde pode partir o fato que mudará sua vida.
O fascínio impressionante pelas “terras do Norte”, um fascínio pelas guerras dos outros, cujos inimigos e cenários eram e são bem diferentes dos nossos. “Testemunha ocular do planejamento estratégico militar dos EUA, antes e depois do 11 Set 2001. Vi um fantástico estado de prontidão para a guerra”, relembra o general sobre a sua primeira missão nos USA.
Eu tentei fazer com que não nos transformássemos em uma fábrica de Drogos. Um desperdício. Uma geração perdida. Em 1991, fui convidado para fazer uma conferência na IX Conferência Continental da Associação Americana de Juristas, precursor do Fórum Social Mundial: coronel recém punido por entrevista no JB, achavam que estaria ali uma oportunidade para “bater nos milicos”.
Defendi um novo papel, ajustado às nossas demandas e recursos. Mostrei que não tínhamos os bilhões de dólares que o Saddam Hussein havia gastado para montar um exército que acabava de ser triturado na Guerra do Golfo, mas que nada nos impedia de sermos astutos.
Aquela poderosa máquina de guerra dos Estados Unidos dependia da opinião pública americana, dependia dos contribuintes para se mover. Bastaria que não déssemos razões para que fincassem o pé em nossas imensas riquezas minerais, escasseadas com as incertezas do desmanche da URSS. Meio ambiente, índios e narcotráfico, três razões que poderiam sensibilizar os contribuintes americanos a autorizar aventuras em nosso território. Bastavam políticas inteligentes nessas três áreas.
O resto seria se dedicar ao nosso grande inimigo: a miséria. Evitar que se transformasse em combustível para agitação social e para o surgimento desses que aí estão.
Em vez de armamentos modernos, preconizava o emprego da política do “forte apache”, da ideia dos polos do general Rodrigo Otávio, da ocupação dos bolsões de miséria.
Lembro-me que quase fui linchado na tal conferência. Chegaram à conclusão de que eu estava sugerindo abortar movimentos como o dos sem-terra. Acabar com as razões que as ONGs alardeavam pelo mundo para pressionar pela demarcação de reservas indígenas. Reestabelecer o domínio do território sobre bolsões, onde populações vivem sob o domínio do crime organizado, resgatando-as para a cidadania.
Desnecessário provar que teríamos feito uma revolução, a revolução que não fizemos nas décadas anteriores. Teriam, os Tenentes de 64, feito a revolução silenciosa que os Tenentes de 22 não conseguiram.
Por tudo isso, entristeço-me quando vejo que estamos envelhecendo sem ter, pelo menos, encaminhado a construção daquele Brasil dos nossos sonhos de cadetes.
Lamento ver um potencial, como o desta geração de Tenentes de 64, ser desperdiçado na “eterna vigília na fortaleza, à espera de um ataque que traga honra e glória”. Focada no inimigo errado.
No fundo, fica aquela frase do crítico citado lá no início, a tocar a consciência de todos nós: “E que, na verdade, você até sabe disso, mas não quer admitir, que você é o único responsável pelas mudanças”.
Mudanças que não passam por combater comunistas, mas corruptos que, da mesma forma, querem assaltar o Estado, mas para se locupletarem.
No fundo o que este texto deixa é que tanto os Tenentes de 64 como o tenente Drogo desperdiçaram suas vidas porque não souberam mudar de inimigos como aconselhava Roberto Campos (in, “Reflexos do Crepúsculo”); “Saber mudar de inimigos é não só uma receita de sobrevivência como, às vezes, uma receita de sucesso”.