Nota do autor:
este texto foi escrito
em março de 2014
Uma
república dominada por sindicalistas pelegos somente não foi instalada em 1964
por duas razões: falta de um líder carismático e a pronta reação das Forças
Armadas.
Passado
meio século constatamos que uma república dominada por sindicalistas já foi
instalada no país por duas razões: a existência de um líder carismático (único
gerado pelo regime militar) e a omissão dos militares. A mesma república
sindicalista, porém, com uma corrupção muito mais refinada, suportada por uma
sólida aliança com o grande capital e garantida por uma base eleitoral mantida
pelos cofres públicos.
Onde
foi que erramos, a ponto de termos transformado em frustrações os sonhos de um
jovem tenente que chegava à tropa, juntamente com 356 companheiros, pensando em
ajudar a construir um Brasil melhor?
Uma
visão retrospectiva mostra que a intervenção que os militares fizeram em 64 foi
para garantir que os interesses superiores da nação não fossem sobrepostos
pelos interesses escusos de governantes que estavam na iminência de assumir
graves compromissos à revelia da nação, pretendendo interpretar despoticamente
o interesse nacional que, no contexto de uma democracia, deve corresponder
essencialmente ao interesse real da população, e não aos interesses de grupos
dominantes, que não atenda necessariamente às aspirações e interesses legítimos
dos diferentes estratos da sociedade.
E
o interesse dos grupos governantes apontava para a instalação de uma república
sindicalista que, como um câncer, espalharia metástases por todo o Estado e a
sociedade, para controlar aquele e subjugar esta. O rumo desta república
sindicalista seria dado pela resultante da conjugação de forças que
transformariam o Brasil em algo parecido com a república bolivariana em que
Chávez transformou a Venezuela.
Reconhecemos
que o interesse nacional não pode ser definido como construção intelectual de
um grupo, mas, também, que na conjuntura que vivíamos nos anos 60, o Brasil era
dividido (como ainda é hoje) em uma maioria desorganizada e uma minoria
organizada, onde se conjugam grupos de interesse, entre os quais as Forças
Armadas, o grupo que, reconhecidamente, não só é o que mais reflete o perfil da
nação como o que tem a consciência mais nítida do que corresponde aos
interesses permanentes da nação, aqueles que constituem o núcleo irredutível do
conceito de interesse nacional: a sobrevivência nacional, a integridade
territorial, a independência, a autodeterminação e a segurança nacional, o
bem-estar da população, a defesa da identidade cultural, a preservação dos
valores nacionais, etc.
Óbvio
que erramos, mas onde foi que erramos, a ponto de transformar sonhos em
frustrações?
Erramos
porque não tivemos a coragem de fazer a intervenção que a situação exigia e que
a sociedade imaginava que fizéssemos. É nossa a responsabilidade porque a sociedade nos deu a
oportunidade de corrigir o rumo e desperdiçamos quem sabe, a melhor
oportunidade para que nos transformássemos na grande nação com que sonhávamos.
Não
vislumbramos a complexidade do problema. Preocupamo-nos somente com o que
víamos do iceberg, a Guerra Fria e seus reflexos internos. E não nos preparamos
para enfrentar a sua parte submersa, imensamente maior. Não preparamos
lideranças à altura dos desafios, gente capaz de praticar uma política de
nação, de penetrar no imaginário e nas expectativas das pessoas para delas
extrair a síntese das suas aspirações. Contemporizamos com uma política cheia
de vícios simplesmente para manter uma caricatura de democracia. Deixamos
hibernando uma corrupção que agora ameaça a própria existência do Estado com
escândalos e roubalheiras por todos os lados.
Em vez da necessária cirurgia, uma
envergonhada intervenção que se traduziu na entrega da Economia para o liberalismo
econômico de economistas liderados por Eugênio Gudin, a Política para os velhos
caciques políticos, inclusos os mais retrógrados e corruptos coronéis políticos
do Norte e Nordeste, reservando para os militares a tarefa de garantir, através
do autoritarismo, que estas áreas operassem sem qualquer contestação e a missão
de enfrentar a subversão. Não fomos capazes de visualizar a trajetória da
sociedade brasileira para preparar o seu futuro.
A
criação daquela nação que todos sonhávamos passava obrigatoriamente pela
definição de um projeto nacional forjado pela participação organizada de todos
os brasileiros, o que somente seria alcançado através de uma profunda reforma
estrutural que permitisse, no longo prazo, a criação de um potencial cívico
capaz de gerar um projeto de nação forjado por todos os brasileiros, ou seja, a
consolidação de um pleno e autossustentado estado democrático.
Para
que não fossem mais necessárias intervenções como a de 64 era necessário sermos
duros para mudar o rumo de variáveis importantes para o desenvolvimento social.
Nosso erro foi usar mal a força que nos autorizaram empregar que se resumiu a
um autoritarismo político que foi mais usado para manter um arremedo de
democracia –que hoje todos chamam de ditadura- e que faltou para as reformas
estruturais que estão atrasando o nosso desenvolvimento.
Autoritarismo
político que serviu para a construção de um bolo que acabou sendo servido
somente às elites, mas que não foi usado para ocupar de forma ordenada a
Amazônia, para impor o projeto Calha Norte como prioritário para a segurança
nacional o que teria edificado a nossa tranquilidade naquela imensa fronteira
amazônica e para estabelecer uma política para a população indígena norteada
por Rondon e não por antropólogos comandados por interesses estrangeiros.
Omissões que provocam sérias ameaças à integridade nacional.
Autoritarismo
político que não foi usado para criar uma política do cidadão que começasse com
um planejamento familiar baseado na paternidade responsável - essencial para a
interrupção no curto prazo do processo de geração de miséria- e que continuasse
com a criação de um sistema nacional de saúde pública e de educação, para
transformar, em uma geração, o brasileiro em um cidadão, capaz de forjar o tão
necessário projeto nacional.
Autoritarismo
político que faltou para enfrentar a oligarquia dominante e dar mais ousadia na
implementação do excelente Estatuto da Terra que certamente transformaria o
Brasil no celeiro do mundo e teria desarmado essa bomba chamada MST que mais
prejuízos e frustrações causou do que encaminhar uma moderna reforma agrária.
Faltou ousadia para decretar índices de produção para as terras agricultáveis,
sobre os quais seriam cobrados os tributos, o imposto da terra, fixo, de acordo
com o potencial estabelecido, o que premiaria os produtivos e inviabilizaria a
posse de terras improdutivas. As terras privadas seriam respeitadas sendo, ao
longo do tempo e sem conflitos, consolidadas as produtivas e sendo dilapidadas,
pelos impostos, as improdutivas. As terras públicas continuariam públicas e
arrendadas pelo pagamento do Imposto da Terra. O Estado ficaria com o papel de
indutor da produção primária. Teríamos feito uma inédita revolução agrícola com
uma revisão fundiária que, sem violência, corrigiria injustiças do passado.
Teríamos tirado, daqueles que só visam à agitação social, a sua maior bandeira.
Teríamos dado um exemplo para o mundo e nos tornado o celeiro do planeta, mas
fomos incapazes de dobrar os latifundiários que dominavam a ARENA dos grotões,
de onde vinham os votos para suplantar os que os grandes centros despejavam no
MDB. Teríamos reduzido os efeitos do desordenado êxodo rural e a criação de
bolsões de miséria nos grandes centros, origem de uma série de problemas dos
quais, o maior, foi a sua transformação em cidadelas do tráfico.
Faltaram
autoritarismo e grandeza política para quebrar a espinha dorsal da corrupção e
criar as bases do verdadeiro federalismo, invertendo o fluxo dos recursos
públicos e declarando o município como o único arrecadador de impostos e centro
da geração da cidadania e da administração das coisas públicas. O município
como único arrecadador de tributos e pagador de um tributo federal e outro
estadual, para custear os respectivos orçamentos. Esta inversão feriria de
morte a corrupção endêmica que desvia uma parcela razoável dos orçamentos
público e criaria as bases para o domínio público da respública, sonho desde os tempos da Ágora de Atenas.
Faltaram
autoritarismo e grandeza política, também, para facilitar o surgimento de uma
geração de líderes, capaz de dirigir essa grande nação. Ao contrário, forjaram
um bando de eunucos que navegam pela bússola dos interesses daqueles que os
financiam ou que os garantem no poder. Faltam-nos líderes em todas as áreas.
Este, um dos maiores erros estratégicos dos militares.
Faltou
autoritarismo político para fazer uma profunda reforma na máquina estatal, para
extirpar dela o vírus da corrupção, para criar um Estado moderno, operado por
agentes públicos capacitados e preocupados unicamente com o bem público. Para
demonstrar “austeridade democrática”, cortamos na própria carne e deixamos
correr solto o resto, permitindo que se criassem e se enraizassem as distorções
absurdas em todos os níveis na administração pública que inviabilizam uma
reforma séria na máquina estatal. A tal “cota de sacrifício” que nos impusemos,
nos condenou a sermos os primos pobres da República com a agravante de não
podermos reclamar, pois fomos nós mesmos os autores. Em vez de criar, logo no
início, uma política única de remuneração para os servidores públicos com um
escalonamento vertical único para todos os três poderes, autarquias e estatais, uma Matriz Salarial Única que envolvesse todos os Poderes, executando as “cirurgias necessárias” nos direitos adquiridos, permitiram que se
consolidasse um absurdo desalinhamento que acabou sendo sacramentado com a
CF/1988.
Faltou
autoritarismo e a visão de estadista para fazer uma revolução na Saúde Pública
e na Educação de Base, sabidamente áreas básicas para qualquer projeto de nação
e cuja implementação exige muita energia e determinação. Perdemos tempo com
Mobral e batendo boca com estudante universitário enquanto devíamos ter focado
nosso esforço para interromper o processo de geração de miséria.
Passados
cinquenta anos reconhecemos que cicatrizes ficaram, mas também reconhecemos que, sem a Revolução de 64, o Brasil seria, hoje, mais do que uma grande Cuba, seria
uma União Soviética porque contagiaria toda a América Latina. Basta ver os
amores daqueles que foram por nós contidos em 64 e que hoje nos governam.
O
que aconteceu no regime militar foi uma guerra suja que, se descontextualizada,
nada mais é do que uma sucessão de atrocidades. Omissões -e mesmo fraquezas-
dos chefes militares permitiram que aqueles duros tempos fossem reduzidos a um
golpe de militares insuflados pelos Estados Unidos para reprimir inocentes
patriotas que só queriam implantar no Brasil uma democracia quando a realidade
é bem outra, pois se tratava de gente treinada e suportada pela União Soviética
e seus satélites -que cometeram os mesmos ou até mais desatinos que agora
acusam os militares- com um objetivo bem claro: transformar o Brasil em uma
grande Cuba.
Esta, a visão retrospectiva de um tenente de 64 que sonhou, se frustrou, mas que
nunca perdeu a esperança de ver a nação pacificada para que juntos construamos
um Brasil melhor.
Péricles da Cunha
(31/3/2014)